Em artigo, divulgado em seu portal , o dr. Drauzio critica a pressão de que as associações defensoras dos interesses dos supermercados têm exercido para vender medicamentos nas prateleiras de suas lojas. Leia aqui.
Em matéria de saúde pública, insistimos em dar passos de caranguejo. Veja a pressão que as associações defensoras dos interesses dos supermercados exercem para vender medicamentos nas prateleiras de suas lojas. Na investida atual, argumentamos que o lucro obtido permitiria baixar o preço dos alimentos, medida em consonância com as políticas governamentais.
Prezado leitora, vamos supor que você acredite neles e que essa reivindicação seja justa e patriótica. Deveríamos aplicar a mesma lógica para padarias, empórios, lojas de conveniência e botequins, locais que também comercializam gêneros alimentícios?
Afinal, levamos anos para criar normas para que as farmácias deixem de ser simples estabelecimentos vendedores de remédios. Entre as várias regras sanitárias, elas devem manter o plantão de um farmacêutico formado em nossas faculdades de farmácia e bioquímica.
Há anos defendo nesta coluna que o caminho deve ser o oposto do que pretendem os supermercados. Temos cerca de 93 mil farmácias espalhadas por todo o país, é mais do que o dobro do número de Unidades Básicas de Saúde, como UBS. O desafio deve ser como integrar as farmácias ao SUS, de modo a aproveitar suas instalações e o enorme contingente de profissionais que trabalham nelas.
Vou dar um exemplo. O programa Estratégia Saúde da Família, com equipes de agentes de saúde batem de porta em porta para orientar e identificar os problemas da população, é considerado pela OMS um dos maiores programas de saúde pública do mundo. Pelo menos duas em cada três residências brasileiras recebem visitas regulares das equipes que são compostas por quatro ou cinco agentes, um técnico ou auxiliar de enfermagem, uma enfermeira, um técnico em saúde bucal e um médico.
Se somarmos o número de agentes comunitários com o de agentes de endemias rurais, temos um contingente com mais de 400 mil trabalhadores. Quando conseguirmos nos juntar aos farmacêuticos e técnicos de farmácia, teremos à disposição um enorme exército prestando serviços de saúde integrados.
As doenças mais prevalentes entre os brasileiros de hoje são as crônicas, responsáveis ??por 80% dos atendimentos no SUS. Nesses casos, o objetivo do tratamento não é a cura, mas o controle. Como regra, controlar é tarefa mais complexa porque não se restringe a pontuais, dependendo do acompanhamento por anos consecutivos, eventualmente décadas.
Tome o caso de hipertensão arterial, condição que pode levar a infarto, AVC, insuficiência renal e outras complicações graves. Os médicos conhecem a regra dos 50%, segundo a qual apenas metade de quem tem pressão alta sabe de sua condição. Entre os 50% que recebem o diagnóstico, a metade não se trata; destes, a metade interrompida a medicação por motivos variados. Resultado final: o tratamento foi realizado especificamente em apenas 12,5% dos casos.
Tamanho do fracasso é explicado pelo fato de que os medicamentos são apenas um dos componentes da abordagem terapêutica que envolve explicar a gravidade, os riscos, acompanhar a evolução e convencer o paciente a adesão à medicação com regularidade, tarefas que nós, médicos, fazemos mal.
Por outro lado, as pessoas que saem dos consultórios com uma receita vão aviá-la na farmácia. No mês seguinte, quando a medicação acabar, voltarão, quase sempre ao mesmo estabelecimento. Nesse caso, quem seria então o profissional perfeito para acompanhá-la? O farmacêutico é ali, muitas vezes, ocupado com tarefas burocráticas, como controlar o cor dos receituários ou o carimbo do médico.
O contato entre os farmacêuticos e o paciente é uma oportunidade única para transmitir informações e convencê-lo a medir a pressão em casa, acessando um aplicativo ou preenchendo uma folha com as ocorrências para levá-lo ao médico particular ou à UBS na consulta seguinte. O medicamento não prescreverá, mas fará os controles e avisará o agente de saúde ou o médico das alterações verificadas.
Com pequenas variações, o mesmo pode ser feito com o controle da glicemia no diabetes, das crises de asma, de quadros alérgicos, de ataques epiléticos e muitos outros homens.
Diante de tantas possibilidades, o Estado vai responder com a venda de medicamentos ao lado de pacotes de salgadinho e latas de cerveja?
Quem vai explicar ao comprador que aquele anti-inflamatório pode causar insuficiência renal ou que aquele remédio é contra-indicado para o caso dele? A moça da caixa, o rapaz do açougue?